Um re-olhar para o setting

Como já abordado neste artigo e em trabalhos anteriores 20, 21, é visível o desenvolvimento das Terapias Cognitivas nas últimas décadas, principalmente no que se refere ao crescimento de pesquisas sobre a eficácia e efetividade do tratamento, e a construção de novos estudos teóricos e novas tecnologias.
Os diálogos entre profissionais da área apontam para continuidade desse movimento, porém também sugerem a ab sobre o espaço clínico. Sabe-se que, na organização de um setting terapêutico, a interação entre aporte teórico e manejo (ou intervenção) clínico é primordial para o desempenho da psicoterapia. O conhecimento das estruturas centrais de uma abordagem psicoterápica fornece ao terapeuta possibilidades
para realizar esses entrelaçamentos (teoria e manejo) com o material clínico, trazido pelo cliente. Nestes entrelaçamentos, o olhar repousa sobre as possibilidades que a teoria abre aos questionamentos decorrentes do setting e consequentemente, sobre a viabilidade desses questionamentos se tornarem dispositivos para novas reflexões e ações tecnológicas. No contexto atual das Terapias Cognitivas, a interlocução teoria e
práxis torna-se cada vez mais um dos assuntos de interesse de psicoterapeutas e pesquisadores, fazendo emergirem questões extremamente complexas e desafiadoras. Questões estas que dizem respeito ao fortalecimento dos estudos acerca da idade terapeuta-cliente 11, 21-23, a recontextualização da prática
clínica nas diferentes culturas 24, 25, a ampliação de estudos sobre processos comunicacionais 17,21, a compreensão dos elementos inespecíficos do setting clínico 26-28 e também a pendular tensão entre técnicas e tecnocracia. Por fim, questões que podem desacomodar algumas vezes os pressupostos consistentemente alicerçados, mas que, por serem estes mesmos pressupostos, mantenedores da ideia de que cognição é o processo de conhecer, viabilizam novos olhares na continuidade dessa abordagem psicoterápica, evidenciando assim a essência da proposta cognitivista: a compreensão dos processos
do cognitus. Em relação aos estudos sobre setting terapêutico nos últimos 25 anos, enquanto psicoterapeuta, supervisora clínica e pesquisadora cognitivista, foi possível observar um interessante fenômeno no contexto da práxis cognitivista: o espaço comunicacional particularizado em cada díade. Durante o setting terapêutico, cada díade (cliente-terapeuta) organiza explícita (foco de tratamento, hipótese diagnóstica, seleção de tecnologias, etc.) e implicitamente (vínculo, aspectos tácitos, estilos comunicacionais) sua forma de experienciar o processo psicoterápico. Fenomenologicamente, são nestes espaços comunicacionais que é conferida a identidade de cada psicoterapia, seja o terapeuta um profissional adepto aos modelos de reestruturação cognitiva, ou aos modelos construtivistas, ou mesmo, em alguns momentos, em ações híbridas. A consciência da importância deste fenômeno é vital para o transcorrer da psicoterapia. Essa temática vem ao encontro das reflexões atuais, que permeiam o cotidiano de pesquisadores e psicoterapeutas cognitivistas 29,30,31. Estudos acerca da díade terapêutica tem sido desenvolvidos por pesquisadores de vários países, com uma ênfase maior por parte de latino-americanos e europeus.

Referente à temática de contextualização das práticas clínicas nas diversas culturas, estudos salientam a necessidade de considerar os aspectos socioculturais no universo terapêutico, pois se sabe que esses aspectos são parte integradoras do self, dispositivos de crenças sociais, tanto do cliente quanto do terapeuta, influenciam muitas das ações e intervenções realizadas no setting. A estrutura do setting e as formas de intervenções comunicacionais estão diretamente ligadas às crenças de estrutura clínica e
proximidade relacional de uma determinada cultura. Outros fatores que nos últimos anos tem perpassado o contexto das Terapias Cognitivas, dizem respeito aos elementos inespecíficos do setting: elementos empáticos, temporalidade (ritmo pessoal), percepção de valores morais, questões de espiritualidade e religiosidade e demais elementos tácitos. Esses estudos tem sido realizados através de pesquisas de modelo quantitativo e de modelo qualitativo, investigando a percepção, tanto do cliente quanto do terapeuta,
em relação a esses elementos e a influência destes no processo terapêutico 3,32. Ao finalizar essa breve apresentação sobre as demandas atuais no contexto das Terapias Cognitivas, uma questão se faz presente: o contexto das técnicas e a tecnocracia. Essa inquietante questão inúmeras vezes se entrelaça ao contexto cognitivista; seja pelas percepções (e/ou pressões) do
olhar externo ou pelas expectativas (e/ou idealizações) do olhar interno. Não são poucas as vezes em que as Terapias Cognitivas são nomeadas de tecnocratas por seu aparente excesso de utilização de técnicas, e também não são raras as vezes em que muitos profissionais se aproximam delas em função dessa mesma visão: a expectativa da técnica enquanto solução em um contexto clínico. A questão não pode apenas ser contestada; seria desconsiderar o elemento reflexivo e indagador de uma história de eminentes estudiosos, que nesses quase cinqüenta anos contribuíram e contribuem para essa perspectiva teórica e tecnológica. Sendo assim, vale colocar o fenômeno em investigação: será que a questão da técnica está sendo consistentemente investigada no cotidiano dos psicoterapeutas cognitivistas? 
Será que a busca de uma “segurança” na ação do clinicar pode estar levando alguns terapeutas a um estado tecnocrata dentro do setting? São questões muito amplas e que seguramente não poderão ser abordadas em um única artigo. Podem, porém, ser dispositivos de reflexão. Uma possível reflexão talvez seja que, tanto nas pressões, quanto nas expectativas, as Terapias Cognitivas ficam vulneráveis. Deve-se salientar que a técnica é um elemento importante no setting cognitivista, mas não o elemento central, e o conhecimento
deste fato deve ser claro a todo o profissional que deseja ingressar no campo cognitivista e a toda comunidade científica, bem como aos clientes que nela buscam auxílio para seus conflitos. Falar sobre técnicas no contexto de manejo clínico cognitivista é falar sobre a capacidade de realizar uma clara e consistente interlocução entre indivíduo, díade terapêutica, história de vida, teoria e delineamento clínico; é ter a coerência com os pressupostos cognitivistas, ou seja, entender a técnica como um possível veículo de acesso ao conteúdo trazido pelo cliente, e nunca mais que isso. Costumo dizer que utilizar uma ação tecnológica é ter a capacidade de realizar uma interlocução criativa e crítica com o conhecimento teórico e tecnológico, e não apenas reproduzi-lo 20. Corrobora-se aqui as idéias de Mahoney1 quando este diz que a problemática não está na técnica em si, mas sim no uso indiscriminado da mesma. Considerando as temáticas apresentadas nos parágrafos anteriores, percebe-se uma gama extensa de questões a serem investigadas no contexto atual e futuro das Terapias Cognitivas. Acredita-se que a complexidade destas exigirá, dos pesquisadores e psicoterapeutas cognitivistas, um grande esforço investigativo e principalmente uma disponibilidade de dialogar entre os diversos aportes cognitivistas, bem como com as demais instâncias
de conhecimento humano. E assim, o ciclo recomeça no processo constante do conhecer. Para finalizar, encerro com uma frase que costumo falar aos meus alunos e colegas: Para construir respostas, precisamos nos permitir construir perguntas.

Entenda-se material clínico, a história de vida do cliente, seu sistema de significações, esquemas novas reflexões cognitivos, crenças cognitivas, pensamentos automáticos, psicopatologia e sintomas
Referências
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Endereço para correspondência:
Simone da Silva Machado
Rua Dona Eugênia, 529
Fone: (51) 3333.2123
90630-150 Porto Alegre, RS, Brasil
E-mail: simoneneapc@terra.com.br
Agradecimentos á Profª Simone por compartilhar este artigo para o conhecimento e pesquisas!

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